top of page

O vírus americano

Brian Massumi

03/04/2020

The American Virus [en]

pdf

Pôr um rosto na ameaça

Depois dos ataques de 11 de setembro, a linguagem usada em torno da ameaça terrorista tinha um toque decididamente viral. Não eram raras as comparações diretas entre o terrorista e o vírus. Ambos possuem uma maneira de te atingir inesperadamente, de irromper subitamente por baixo do limiar da percepção, atacando de qualquer direção com uma implacabilidade inumana, uma letalidade dispersa, quando não com uma precisão assassina. O limiar da percepção coincidiu amiúde com a fronteira da nação. O terrorista era o inimigo “sem rosto”, como o “outro”, como uma fita solta de RNA entocada em um suíno, à espera de detonar a carne humana.

No meio disso, um terrorista doméstico meio incompetente, mas imaginativo, entrou em ação. Em maio de 2002, caixas de correio começaram a explodir no Meio-Oeste estadunidense. Durante alguns dias, 18 aparelhos explosivos improvisados foram plantados em caixas de correio do centro do Texas até o norte de Illinois. Os ataques não pareciam aleatórios. Pareciam seguir um padrão que ia sendo preenchido a cada ponto de incêndio. Os inimigos da nação estavam enviando alguma mensagem? Seria o prelúdio de um ataque maior? Pânico, uma caçada multi-estatal se seguiu. O perpetrador foi preso antes do plano ser concluído. Ele chegou perto, porém. Explicou que pretendia 24 explosões. Confessou que precisava de mais 6 para desenhar um sorriso pelo coração dos Estados Unidos.

Os estilhaços sorridentes do Smily Face Bomber eram como um jack-in-box retalhado fazendo careta. Você conheceu o inimigo, e ele é você.

00:00 / 04:36

Dos vários regimes de medo

O Smily Face Bomber tinha bomba caseira. Hoje temos emoticons. Ainda temos literalmente bombas virais de RNA, mas também temos viralidades informacionais de zero-e-um na forma contagiosa da trollagem, dos mercadores de teorias conspiratórias, e de tweets presidenciais – aparelhos explosivos improvisados para detonar o social via caixas de correios virtuais. A reação de pôr um rosto no “inimigo sem rosto” continua aí, mas sem a ironia. O rosto carrancudo é o emblema dos nossos dias.

O rosto carrancudo no comando, o emoticon humano Donald Trump, tem feito tentativas intermitentes de pôr um rosto na crise, de preferência não-branco. Trump vangloriou-se do papel imaginário que seu muro xenófobo ao sul da fronteira teria para diminuir o contágio. Insistiu em chamar a Covid-19 de o “Vírus chinês”, mesmo enquanto os Estados Unidos se tornavam o epicentro da pandemia (sugerindo uma denominação geográfica diferente). Ele propôs a quarentena do resto do país para protegê-lo contra a elite costeira doente de Nova York. Ele até lançou a ideia de despachar as forças militares para as fronteiras do norte a fim de proteger a nação contra as hordas canadenses. Porque isso é uma guerra – assim como a guerra ao terror também o era – e o que é uma guerra sem tropas? As “tropas” na linha de frente, os especialistas da saúde pública, que pedem desesperadamente por mais contingente – do tipo que maneja amostras de testes em vez de armamento militar --, não têm o drama necessário.

A resposta mais consistente de Trump, entretanto, não tem sido a dramatização, mas a minimização. Aplaudido pela Fox News e por diversos especialistas e políticos de direta, ele transferiu o modelo do negacionismo climático para o corona vírus. Uma gripezinha!, exclamaram. É uma maneira diferente de pôr um rosto nisso – um rosto “liberal”. O vírus é anódino. A ameaça real é a bomba terrorista do socialismo furtivo. A nação está completamente assustada, e por isso voltará choramingando para o “Grande Governo”. E ainda que o vírus seja um tanto mortífero, nós temos que seguir adiante e manter o país funcionando. “Não podemos tornar a cura pior que a doença”. A economia de livre mercado deve ser salva a todo custo. Os mais vulneráveis, afirma o Governador do Texas, o Tenente Dan Patrick, devem ser bons soldados e se preparar para o autossacrifício para salvar o país desta ameaça pior que a morte: uma economia doente. Os idosos, os desabrigados, as pessoas com a imunidade comprometida, todos os que tendem, no melhor dos tempos, a cair para o fim da lista da triagem (pessoas com deficiência, com síndrome de Down, com demência, os autistas, os pobres) serão os heróis não cantados da nação. Qualquer semelhança com eugenia…

Esta estratégia dupla, apesar da contradição de dramatizar e de minimizar simultaneamente, levou Trump a registrar altos índices de aprovação. Isso implica que não há contradição alguma, mas um acoplamento operacional entre dois modos de projetar a ameaça sobre um rosto inimigo, com o intuito de afastar a percepção do perigo. Em um regime de medo, a personificação projetada do perigo e a subsunção da vida mesma pela economia andam de mãos dadas. Na era do 11 de setembro, o terrorista foi assimilado ao vírus do outro, desumanizado. O inimigo “inespecífico” e “assimétrico” era preponderante, e precisamos de um coringa explosivo para nos lembrar que o medo pode ter um rosto. Nos nossos dias de peste contemporâneos, o que domina é a assimilação do vírus a um inimigo identificado, preso em um espelho demasiado humano, como num debate, um face a face, polarizado pelo ódio. A técnica de produção do outro não está de forma alguma acabada. Ela oscila com a personificação, coexistindo com a figuração do perigo como a outra metade de si próprio. A taxa de aprovação de Trump rondou os 50%. Nós conhecemos o inimigo – é a nossa outra metade. A guerra assimétrica, pendulando como o equivalente moral da guerra civil?

E a outra metade? Sem necessariamente personificar ou mercantilizar, a outra metade (se posso extrapolar minha própria experiência) se sente golpeada e sitiada, tanto pela ameaça do vírus quanto pela resposta da outra-metade do outro. Checa obsessivamente o feed de notícias numa tentativa interminável de tirar a temperatura de uma crise que transborda o termômetro a cada abordagem. Agudamente consciente da inumanidade do vírus e de sua indiferença para com o acontecimento de sua própria emergência. Dobrada sobre seus próprios questionamentos e postergando indefinidamente por necessidade de agarrar-se a alguma coisa. Embora não seja uma personificação, isto é intensamente individualizante – assim como o é o distanciamento social imunitário, devidamente praticado entre as buscas na internet sobre os últimos números estarrecedores. Esta individualização não está na base da mesma economia liberal para a qual os Donald Trumps e Dan Patricks do mundo nos pedem para sacrificarmos nossas vidas?

Dois regimes de medo: projetivo-agressivo e imunitário-defensivo, personificação e individualização. Unidos no curso da agonia neoliberal. Este é o vírus americano? Sorria.

 

Cuidar do acontecimento

Virou lugar comum a filosofia contemporânea afirmar que, ética e politicamente, o acontecimento é um apelo para nos tornarmos iguais a ele. Personificar e individualizar não são iguais a um acontecimento que vigorosamente demonstra nossa interdependência. Nada como o fechamento da economia para nos lembrar de como nossas vidas estão finamente suspensas em uma rede de mutualidade. Nunca antes sentimos a mercearia do bairro ou as pessoas que trabalham com entrega tão integradas à existência social. A origem mesma do vírus está entrelaçada em uma teia ecológica: uma rota de transmissão multi-espécie para a qual os cientistas há muito tempo nos alertam que as condições estavam dadas, em razão da destruição dos habitats e do aquecimento global. Isso não envolve uma só cidade – envolve um planeta. Isso envolve o cuidado de uns com os outros, em consonância com o cuidado com o planeta. Isso envolve não uma personificação, mas assumir o imbricamento integral de cada um em um mundo mais-que humano.

            Em vez de transferir o negacionismo das mudanças climáticas para a Covid-19, temos a opção de transferir o momentum coletivo que tem sido construído pelo movimento de emergência climática ao apoio mútuo e à celebração da vida nessa crise, com o olhar voltado já para além dela, para continuar a luta contra a maior das crises da qual esta é indiscutivelmente tributária. Isso inclui dar passos em direção a um tipo de economia que jamais nos pediria – aos nossos vizinhos, ao planeta – para nos deitarmos e morrermos. Isto é o que deveria ser cantado das varandas: pós-capitalismo, em voz alta. Não me refiro à imitação que faz disso o “socialismo democrático”, que não passa de uma tentativa de dar um rosto humano ao capitalismo. Isso é o melhor dentre alternativas oferecidas. Mas já vimos onde os rostos nos conduzem.

            Uma imbricação mútua de uns com os outros: tentemos algo transindividual desta vez. Um mundo mais-que humano: faça-o multi-espécies.

            Isto é para vocês, Trump e Companhia: olhando para trás, daria lhes uma coisa sobre a qual vocês poderiam dizer que tinham razão. Exceto a parte do furtivo.

            Em voz alta.

n-1 https://n-1edicoes.org/011

André Arias [tradução]

bottom of page