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Guerra e pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre
Acácio Augusto
09/04/2020
A linguagem..., a linguagem..., dizia meu avô — disse Renzi —, essa frágil e enlouquecida matéria sem corpo é uma tênue fibra que entrelaça as pequenas arestas e os ângulos superficiais da vida solitária dos seres humanos porque ela os amarra, como não? Sim, e os liga, mas só por um instante, antes de voltarem a afundar nas mesmas sombras em que estavam mergulhados quando nasceram e berraram pela primeira vez sem ser ouvidos, numa remotíssima sala branca, e de onde, outra vez no escuro, lançarão em outra sala branca seu último grito antes do fim, sem que sua voz tampouco chegue, de certo, a ninguém.
Ricardo Piglia. Anos de formação: O diário de Emilio Renzi
As autoridades governamentais e de organizações internacionais, como o governo brasileiro e a ONU, insistem na retórica da guerra ao vírus para se referir às ações para conter a pandemia da Covid-19, declarada oficialmente no dia 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde. Isso é, também, um atentado contra a vida. Não contra a vida em geral, a Ideia de Vida, mas contra a vida real de cada um, a vida livre.
Então, se você, virtual leitor, não é patrão, empresário, político, militar ou governante, não caia nesse conto, não use a metáfora da guerra para se referir a uma luta que é pela vida de cada um e não pela morte de um inimigo invisível e intangível. Além dessa retórica da guerra não fazer sentido, ela apenas atende aos interesses dos que almejam o controle social e político total antes, durante e após a pandemia. A guerra, como sempre foi para esses senhores, é a saúde do Estado.
Uma definição clássica de guerra diz que ela é um “conflito armado, público e justo”. Portanto, uma guerra segue uma espécie de roteiro que, mesmo sujeito às intempéries do acaso e às investidas de variados interesses, possui uma forma específica. Há objetivos definidos, um inimigo declarado, etapas a serem cumpridas, planos de ação e hierarquia dos agentes, gente treinada para matar, ciência de combate, espionagem e neutralização etc. Ela é a realização de um teatro sangrento, regulado racionalmente e distribuído no espaço. E mesmo que a chamada guerra clássica tenha se metamorfoseado e hoje leve nomes como “conflito de baixa intensidade”, “guerra de quarta geração” ou “estados de violência”, ela segue produzindo um banho de sangue e uma pilha de cadáveres humanos tomados como inimigos (os treinados para a morte do outro lado), e isso não tem nada a ver com um vírus, tampouco com uma situação social e política nomeada com pandemia. Ao menos não deveria ter.
O uso de analogias e metáforas militares para se referir às ações sanitárias não é novo, trata-se de algo mais ou menos generalizado na linguagem moderna. Em Vigiar e punir, Michel Foucault demonstra como a tecnologia política disciplinar, vinculada aos modernos saberes médico, militar e criminológico, segue o modelo da peste (muito mais que da guerra) como condição ideal de sua realização. E aí não se está exatamente em situação de guerra, mas de repartição disciplinar dos corpos, controle intensivo de territórios e produção espacial de lugares de confinamento. Isso justifica o controle total da circulação de pessoas e sua divisão no espaço como forma de contenção da contaminação e a necessidade de sacrifício coletivo. Todos obedecem em nome da salvação pública e cada um pode ser isolado e disciplinado por meio de uma “anatomia política do detalhe” sobre os corpos.
Sabemos que as tecnologias disciplinares há muito cederam espaço para as tecnologias políticas da sociedade de controle. No entanto, elementos do efeito disciplinar que se buscava na cidade pestilenta ainda são produzidos, sobretudo a abertura de um campo de capilaridade para exercício dos poderes. Como observa Foucault, “contra a peste que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise. (...) Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos ‘contágios’, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem. (...) No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão. (...) A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava”.1
Mesmo com as metamorfoses do poder disciplinar, notem que não é exatamente de guerra que se está falando. Poderia se falar de guerra interna. De qualquer maneira, trata-se de fazer operar o controle e a divisão dos corpos para exercício do poder divisionário e analítico. E as autoridades continuam dizendo que estamos em guerra. Em texto publicado no dia 22 de março na Folha S. Paulo, o secretário geral da ONU, António Guterres, pontifica que “a Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação”. Reiterar que estamos em guerra é o prenúncio de que mortes serão inevitáveis e sacrifícios serão necessários.
Isso vale também para os inúmeros militares que ocupam o governo brasileiro, a começar pelo Ministro-Chefe da Casa Civil, General Braga Neto, que a cada comunicado insiste na necessidade de operações de guerra para conter a pandemia. No Brasil, o envolvimento das Forças Armadas na “guerra ao vírus” não se restringe ao militares reformados que ocupam cargos civis no governo do Covarde 17 ou Capitão Corona, como vem sendo chamado o presidente da República. No dia 18 de março de 2020, o Ministério da Defesa publicou no Diário Oficial da União a Portaria Nº 1.232 GM/MD para “Aprovar a Diretriz Ministerial de Planejamento nº 6/GM/MD, de 18 de março de 2020, que regula o emprego das Forças Armadas em todo o território nacional para apoio às medidas deliberadas pelo Governo Federal voltadas para a mitigação das consequências da pandemia Covid-19, na forma do anexo a esta Portaria”. Neste anexo, dentre outras diretrizes, consta como possibilidades de atuação das Forças Armadas: “b) Empregue os meios de Defesa Biológica, Nuclear, Química e Radiológica (DBNQR), para descontaminação de material, em coordenação do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas; (...) f) Apoie à triagem de pessoas com suspeitas de infecção para posterior encaminhamento aos hospitais.”2 Por meio do discurso da guerra se empreende uma operação de guerra de fato, e esta atinge não ao vírus, mas os cidadãos.
Insistir na metáfora da guerra é insistir no fomento de uma guerra interna contra e entre as pessoas, do Estado contra todos e cada um. E, assim, perde-se de saída. Por dois motivos: o primeiro é factual, pois pressupõe que o vírus está fora, quando está dentro. Logo, como conter a "invasão" de algo que já está entre nós e que habita invisível e virtualmente cada um dos corpos? O outro motivo é ético-político: médicos e demais trabalhadores da saúde não são soldados, ao menos não deveriam ser. Novamente, trata-se de convocar ao sacrifício. Mobilizar a linguagem da guerra contra um não inimigo, já que o vírus não declarou guerra a ninguém, só aumenta a conflituosidade social, sobretudo entre os “alistamentos voluntários” de pessoas que se sentirão autorizadas a dizer como o outro (vizinhos, por exemplo) deve se comportar durante a pandemia, fazendo das pessoas reais e visíveis, virtuais infectados ou vetores do vírus, os reais inimigos. Essa imagem, criada pelas autoridades e pelos os que governam, não apenas corrói a solidariedade social – essa sim eficiente na contenção e mitigação dos efeitos do vírus – como vai elegendo pessoas e grupos como alvos. Nesse momento entram os exércitos e as polícias como elementos "necessários", agentes da ordem unida que, suspostamente, estão atuando de forma “enérgica” para o bem de todos.
Desta maneira, os controles sanitário-securitários são justificados como medidas duras, mas necessárias, medidas de exceção para uma situação sem precedentes, novamente, uma guerra. Mas a verdade é que as autoridades são apontadas como solução de um problema que elas mesmos criaram ao usarem a retórica da guerra e ao se colocarem como única forma de conter o vírus, alçado aos status de inimigo mortal. E isso não é o pior, pois essa lógica se espalha entre os que se sentem autorizados a fazer “o que for necessário”. Se espalha, porque os cidadãos em geral se sentem alistados nessa guerra fictícia, ou melhor, fabricada pela retórica da guerra. E como o vírus é invisível, quem vira o inimigo a ser combatido? Virtualmente, qualquer um ou qualquer grupo social. Exemplos não faltam. Quando no Brasil a epidemia nem havia se instalado, já corriam relatos de hostilidades contra pessoas com traços asiáticos, com as medidas de isolamento social já em curso, há relatos de cidadãos-polícia que até ovo atiraram em pessoas que estavam sozinhas – sem contato social, portanto – andando de bicicleta na rua.3 E assim, esse inimigo pode ser a China, como insiste o presidente dos EUA Donald Trump e seus asseclas da familícia fascista brasileira que no momento ocupa o Palácio do Planalto; pode ser o imigrante, como foi na Itália; pode ser o morador de rua em qualquer parte do planeta; alguém que supostamente desrespeitou a quarentena etc. Em resumo: qualquer um, menos os que produziram essa situação. O campo para o exercício do racismo de Estado se amplifica consideravelmente, inclusive para além das instituições estatais. Muitos, por sua própria condição, serão entregues à morte e, como já foi dito por diversas autoridades no Brasil, mortes serão necessárias para que a “vida volte ao normal e o impacto econômico seja mitigado”. Ademais, como a epidemia é antes uma situação social e política e não um fato biológico, sabemos que ela atingirá diferencialmente a depender da classe, etnia e gênero de quem estiver em meio a ela.
É impressionante como mobilizar essa linguagem de guerra e sacrifício faz com que militares, políticos, gestores, empresários e corporações multinacionais caridosas (bancos e empresas de tecnologia computo-informacional, sobretudo), se tornem, magicamente, os heróis e salvadores de uma condição que eles mesmo produziram. Bancos já anunciam em suas propagandas novas possibilidades de endividamento “para atravessar a crise”; corporações de tecnologia computo-informacionais foram imediatamente inundadas com dados de vidas que voluntariamente se transferiam para o universo online, das atividades laborais aos encontros sociais. E como vemos acontecer no Brasil, onde a conduta fascista grassava muito antes do espalhamento do vírus, a emergência de um inimigo intangível pronto a se tornar a fonte de todo mal, abriu ainda mais o campo de variadas formas de exploração e de exercício de autoritarismos.
Posso estar errado, pois não sou especialista em questões médicas, mas tudo que li sobre o controle do vírus em países que o receberam muito antes do Brasil informa que a testagem em massa e o uso de máscaras adequadas, além dos cuidados com higiene e com os grupos mais frágeis, são as principais medidas de contenção e/ou mitigação da epidemia. Curiosamente, faltam máscaras e os testes, até o momento, demoram a aparecer. Será que é muito difícil um esforço excepcional (ah!, a economia essa deusa moderna que senta ao lado do deus Mercado!) para produção de máscaras e testes em massa? Porque são tão rápidos em expandir os controles eletrônicos, os monitoramentos mútuos, as declarações de estado de sítio, a imposição do home office, mas tão lentos para produção ou compra de testes e máscaras? As informações disponíveis dão conta que há uma saturação da produção e que os principais fornecedores de testes para Covid-19 e EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) estão sendo monopolizados pela nação mais rica e poderosa do planeta, os Estados Unidos. Mesmo que seja esta uma justificativa incontornável, fica explícito como no capitalismo a produção e reprodução de mercadorias se sobrepõe a vida das pessoas, pois a capacidade tecnológica de produção existe, a limitação que se impõe é uma limitação de mercado. Não é uma coincidência que, além dos militares, os maiores propagadores da retórica da guerra sejam os economistas. Sejam eles funcionários de Estados e representantes de empresas ou das bolsas de valores, sejam os comentaristas da imprensa escrita ou televisa, todos repetem em uníssono que o plano de recuperação deve ser uma ação de economia de guerra.
As notícias em todo planeta também informam que o distanciamento social é necessário neste momento para conter o espalhamento da doença. No entanto, governos declaram quarentena e/ou estado de sítio, mas não investem em testes e equipamentos de proteção, como as máscaras. Falta proteção até para as equipes de médicos e enfermeiros! Para não falar em entregadores e motoristas de aplicativos, funcionários dos Correios, trabalhadores autônomos, profissionais de serviços domésticos e demais trabalhadores que são coagidos a trabalhar sem o devido equipamento de proteção ou mesmo com remuneração reduzida. O que passa então? O que passa é que ao falar de guerra, deixa-se claro que não se trata de conter a epidemia, mas de manter e expandir o controle das ruas, das vias de comunicação, da circulação de bens, pessoas e mercadorias. Ainda que em meio a isso também se contenha, de forma regulada, o espalhamento do vírus. Como sabemos, o poder é logístico. A retórica da guerra é isso: o meio pelo qual antes, durante e depois da pandemia, governos de todo planeta vão justificar as milhares de mortes e buscar manter o controle da logística no planeta. Neste ponto fica evidente porque a mobilização militar, que não ocorreu apenas no Brasil, se impõe como tão necessária: os militares são reconhecidamente especialistas em logística.
Os Estados e as corporações multinacionais possuem interesses próprios que são antagônicos aos da vida de cada pessoa, especialmente da vida livre. Quando eles chamarem, não se aliste nessa guerra fabricada. A melhor maneira de lidar com a situação é pelo autocuidado, o apoio mútuo, a ciência não autoritária, a ação direta e a defesa da vida.4 Ficar à mercê das autoridades é entregar a vida aos que, desde sempre, apenas jogam com ela. O vírus não é um inimigo, ele é apenas mais um dos vários agentes infecciosos que nos atravessam ao longo da vida. O Covid-19, em especial, pode matar, não se trata de diminuir esse truísmo, mas de compreender que ele não é um inimigo. O Estado, sim, além de parasita, é um inimigo da vida livre. As corporações, sim, são inimigas que já tomam a situação de pandemia como uma via de expandir seus controles e criar novas formas de exploração e extração de lucratividades e dividendos.
Como cantou, no final dos anos 1970, a banda anarcopunk Crass: “eles nos devem uma vida”. Não entregue a sua a eles. Como também colocam esses inventores do punk em seu manifesto inicial: “não há autoridade a não ser você mesmo”.5 O Estado e as corporações planetárias só se interessam por sua vida na medida em que você está disponível a servir, na medida em que se entrega à servidão voluntária. A vida não é um fato biológico e não pode estar disponível aos medidores que as contabilizam em bancos de dados estatísticos e georreferenciados do nascimento à morte. Neste momento, nada mais humano do que temer pela própria vida e pela vida de seus entes queridos. Mas é sempre bom lembrar que a distribuição dessas mortes anunciadas não se dará de forma igualitária e que uns serão mais matáveis e que outros. Isso é intolerável. Mas, sobretudo, é urgente se perguntar desde já, diante desse quadro de guerra: qual vida queremos viver durante e depois da pandemia?
Vida em servidão não é vida, mas sobrevida.
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Notas
1– Michel Foucault. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 164.
Brasil. Diário Oficial da União - Portaria nº 1.232/GM-MD, de 18 de março de 2020. Publicado em 19 de março de 2020. Disponível em http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.232/gm-md-de-18-de-marco-de-2020-248808643
2– Como já ocorreu em alguns lugares de São Paulo, como mostra esta reportagem: Marie Declercq. “Moradores do entorno do Minhocão agridem passantes por saírem em quarentena contra coronavírus” In Folha de S. Paulo, 30/3/2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/moradores-do-entorno-do-minhocao-agridem-passantes-por-sairem-em-quarentena-contra-coronavirus.shtml
3– Seguem dois exemplos de publicações de grupos anarquistas anônimos que informam sobres práticas de autogestão, autocuidado e ação direta em várias partes do planeta:
CrimethInc. “Sobrevivendo ao Vírus: Um Guia Anarquista”, In https://pt.crimethinc.com/2020/03/20/sobrevivendo-ao-virus-um-guia-anarquista-capitalismo-em-crise-totalitarismo-crescente-estrategias-de-resistencia
4– Facção Fictícia. “A luta é pela vida – escritos anarquistas sobre capitalismo, pandemia e a luta pela vida” In https://faccaoficticia.noblogs.org/post/2020/03/22/luta-pela-vida/
5– Crass: escritos, diálogos e gritos. Imprensa Marginal/No Gods No Masters, 2017, p. 10.
n-1 https://n-1edicoes.org/018
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